quinta-feira, 1 de novembro de 2012

“Bem-vindos ao Cabaret Maxime”

Reportagem publicada em 2005 - Jornal Notícias da Manhã 



Nas décadas de 50 e 60 apresentou-se como uma das casas de espectáculos mais bem frequentadas de Portugal… “Um cabaret” de luxo que recebeu, durante a sua época áurea, com toda a pompa e circunstância, a alta sociedade de um País governado por um regime de “pouca cor e festividade”.
Personalidades como o Rei de Espanha eram presenças habituais num espaço “que era único em terras lusitanas”. Tony de Matos, Raul Solnado (estreia-se profissionalmente nesta casa em 1952, com o espectáculo “Sol da Meia-Noite” uma produção de José Viana onde também participou a artista Gina Braga), Simone de Oliveira e Max foram alguns dos artistas que “encantaram”, durante várias noites, uma casa onde o glamour era marca obrigatória. 

Com a revolução dos Cravos em 1974, o mítico Cabaret Maxime sofreu algumas mutações, e a sua degradação, anos após anos, foi inevitável, tornando-se mais tarde numa casa de alterne, ligada ao sub-mundo da prostituição.Em Janeiro de 2006, a histórica casa da Praça da Alegria “renasce das cinzas” para ocupar um lugar de destaque na agenda dos noctívagos “alfacinhas”… e não só.


Gerido por Bö Bcström e pelo divertido Manuel João Vieira, líder dos Ena Pá 200 e dos Irmãos Catita, o actual Maxime tenta afigurar-se cada dia com uma programação de luxo."Quisemos fazer uma coisa diferente. Trazer bandas portuguesas, dar oportunidades a novos grupos, proporcionar o lançamento de DVD’s. Em suma, dar ao público um espectáculo diversificado”, explica Jorge Antunes, assessor/consultor da casa.


Jorge Palma, Dead Combo, Zé Cabra, Susana Félix, foram alguns dos músicos que já actuaram na reformulada casa de espectáculos. Porém, desde a sua reabertura, um dos momentos únicos, recordado por Jorge Antunes, foi a actuação de José Cid. Numa plateia constituída por muitas figuras públicas, e acima de tudo por muita gente jovem, o auto-intitulado “pai do rock português”, sozinho com o seu piano, tocou os seus maiores êxitos com a ajuda do público, que desde cedo se mostrou participativo, cantando letras que muitos nem sabiam que conheciam, como se estivessem perdidas no seu subconsciente. “Foi um êxito… nunca esperei que pessoas de 30/35 anos participassem tão efusivamente no espectáculo dado pelo José Cid”, conta o assessor.


Mas, como seria de esperar, são os Irmãos Catita e os Ena Pá 2000, “com o seu jeito controverso e com um pouco de loucura à mistura”, que arrastam um maior número de adeptos para um espaço que já é considerado como uma “instituição”.
Além do espectáculo, o Maxime aposta em oferecer diversidade aos clientes que o visitam. “À quarta-feira exibimos sempre um filme e realizamos vários workhops ligados ao teatro, à dança e outras áreas. Tentamos também ser palco de eventos relacionados com a moda, como foi o caso da passagem de modelos da Ana Wilson, na última terça-feira e ceder o espaço para lançamento de livros”, revela Jorge Antunes.

“Life is cabaret, old chum”...
“Bem-vindos ao Cabaret Maxime”…. A saudação efusiva acompanhada por uma vénia pouco usual é feita logo à entrada por um “porteiro très original”. Com um chapéu na cabeça e com um fato preto, reporta-nos para um cenário hollywadesco… Ao colocarmos o pé naquela renovada casa somos transportados para outra realidade: Com uma decoração sui generis, preservando o ambiente dos genuínos cabarets, os vermelhos e pretos são uma constante, dando àquele espaço uma pitada de Moulin Rouge à portuguesa.
Antigos vinis forram as paredes do corredor… O espaço escuro é iluminado por lamparinas de luz encarnada dispostas pelas mesas, que aos poucos se vão enchendo de “nocturnos”, prontos a esquecer mais um dia de cansaço. As conversas sussurram pelo amplo espaço enquanto se aguarda por mais um momento melodioso. A cortina de veludo vermelha que “esconde” os artistas finalmente é recolhida, onde o palco é “abalroado” pelos “ inigualáveís” Irmãos Catita.
Alegria, risos, palhaçadas e muita boa disposição espalham-se por todos os cantos e recantos. Já pela madrugada fora, os últimos sobreviventes abandonam a casa de espectáculos, levando na memória uma noite bem passada e no pensamento a ideia de voltarem… Quem sabe já amanhã. “Life is cabaret, old chum”... e o Maxime revive esta máxima!

domingo, 28 de outubro de 2012

Ouvir Bana pela primeira vez


Reportagem feita em 2008: Publicada no Jornal Expresso das Ilhas/Cabo Verde 




Ele é um ancião das mornas que através da sua voz quente emociona e embala quem as ouve. Ela, uma portuguesa com um talento inato para a escrita, que se apaixonou perdidamente por uma terra que facilmente nos saia da memória. Juntaram-se as recordações do artista com a criatividade da autora e o resultado não poderia ser melhor: “Bana uma vida a cantar Cabo Verde”.  

Nestas breves linhas poder-se-ia falar do seu percurso, da sua morna, da sua música, mas isso já é do conhecimento geral. Homenagear este “gigante” é uma tarefa difícil, mas talvez, contar sobre a primeira vez que eu e a sua voz nos encontramos (e certamente não será única) poderá explicar o efeito que este homem que “por detrás do esforço do seu sorriso, se descortina a intenção de camuflar a saudade”, tem sobre as pessoas. É natural. Está-lhe no sangue, desde que abrira os olhos para o mundo... numa época, onde a revolta das bandeira negras deixou a sua marca na vida dos mindeleses.“Despertou a consciência para os direitos da população, pois a aceitação do sofrimento não deve ser a expiação de um povo e a conformação só deve existir para o dado consumado – a morte” (in Bana, uma vida a cantar Cabo Verde). E Bana nunca se acomodou. Nunca se sentou, confortavelmente numa cadeira, à espera que a sorte lhe trouxessem bons ventos. Preferiu arregaçar as mangas e ir à luta. 
 Ouvi-lo e vê-lo é sempre uma aventura de sentimentos, contradições, verdades e raivas explicadas. Quem escuta com atenção o mestre de “personalidade complexa mas de coração dado”, fica tocado perante simplicidade. Quis comprovar que sentido poderia fazer para mim estas palavras. Uma portuguesa acabada de chegar à Ilha de Santiago, que traz na alma e, na bagagem, o fado de outros tempos e do agora. A morna pertencia à minha memória longínqua.

O Cantor que declama
Antes do pequeno espectáculo improvisado num restaurante bem conhecido da capital, “o Gambôa”, a conversa…Um Bana que luta contra os anos que tendem a não querer abrandar. Um Bana, que mesmo cansado fisicamente, não se importou de falar, mais uma vez, sobre a história que nas últimas semanas contou tantas e tantas vezes. Alias, mesmo agora com 76 anos, o homem de quase dois metros de altura, falou com o mesmo entusiasmo aquando em 2004 foi convidado para um programa de Rádio na Praia. “Deu na cabeça do locutor pôr-me a falar em directo com as pessoas. Eu ficava ali uma semana! As pessoas falavam, falavam, falavam…”.
As luzes a meio gás para dar ambiente à sala. Apenas dois músicos e ele. A sua figura imponente marca qualquer um, mas a sua voz é a verdadeira “estrela da noite”. Encostou-me à cadeira e fecho os olhos. Deixou-me embalar. Canter de Felecidade, Sonho di inha sperança, Mar di Canal… não há palavras, só emoções.
“Quando declama as mornas, fixando alguém das primeiras filas, tem a capacidade de fazer crer a cada dama espectadora que aquele romântico é dirigido a si…”, Nessa noite Bana fez me sentir assim…
África, Europa, pelo mundo a fora a “cantar Cabo Verde”, o artista que é conhecido pelos vários concertos de despedida, toca cada pessoa que convive com ele através de uma expressão cantável indecifrável.
“A minha posição de deixar os palcos foi levada a sério por mim. Os meus companheiros de palco e os meus admiradores é que não deixaram de insistir e pressionar, dizendo que não poderia virar as costas ao nosso Folclore. Face a isto, acabei por me render sem culpas. De facto, é uma doçura saber que ainda podia fazer algo”.

 A paixão da escritora
A caneta desliza pela última vez. Foram escrita as derradeiras frases. “Es nôs nascê dum loucura, mim pâ me vivê ê d´bô carinho, e d´bô sorriso, ma bô ternura, se es falta-me mim d´já-me morrê... desabafava o cantor elucidando os sonhos que convocaram o dia seguinte”. O sentimento não poderia ser outro... Missão Cumprida!
Quando Raquel Ochoa nasceu em Janeiro de 1980, Bana e o sucesso já caminhavam de mãos dadas... Enquanto a portuguesa se licenciava em Direito e viajava pelo mundo, em busca de novas experiências e aventuras que a enriqueciam enquanto ser humano, o cantor firmava a sua marca em cada cantinho do mundo. Quis o destino que as suas vidas se encontrassem. Há quem acredite que não haja coincidências. Sou uma dessas pessoas. O encontro dos dois estava escrito desde o início e isso é notório pela cumplicidade e sobretudo, pela amizade que criaram nos dois anos e meio que Raquel levou a pesquisar e a escrever “Bana, uma vida a cantar Cabo Verde”.
“Quando cheguei a casa dele foi recebida por um grande senhor. Na primeira entrevista tive logo a certeza que isto era uma história de vida para contar. Apercebi-me da importância que Bana que tem em Cabo Verde e em Portugal e descobri uma coisa muito importante. A dimensão que ele tem enquanto impulsionador da cultura cabo-verdiana”. 
Uma única vez em terras crioulas foi o suficiente para esta jurista de profissão e escritora de alma e coração (Raquel publicou um primeiro livro “O Vento dos Outros” uma crónica de viagens aos Andes), reunir impressões que levaram a entender o local o espírito das suas gentes e perceber a marca que o cantor deixou na cidade de Mindelo, sua terra Natal.
A paixão pela descoberta do arquipélago e a surpreendente vida deste novo amigo, emocionou a escritora que quis na biografia não só relatar as experiências e vivências deste “embaixador da música cabo-verdiana”, mas também, contextualizá-la com cada época. “Escrevi esta obra também com o objectivo de valorizar a terra. Li muito, mas não achei nenhuma obra com o carácter que quis dar a este. Era necessário um livro que pudesse, de forma positiva, reunir todas as características que são únicas em Cabo Verde e depois depositá-las numa só obra de maneira a ser estimulante ler. Ainda por cima ter como fio condutor a vida do Bana…”, relatou.
Quanto à empatia com o cantor: “Há um sentimento de amizade que ao longo do tempo foi crescendo. É uma pessoa complexa, com uma coração gigante, que através da sua voz conseguiu que os imigrantes matassem as saudades, talvez tenha sido a pessoa lá fora que mais entrou no coração das pessoas. Ouvir o Bana era quase como um confessionário. Conhece-lo enriqueceu-me enquanto escritora e ser humano”.
Devido ao sucesso do projecto, uma edição de luxo com um CD, Raquel já tem outros planos na manga para esta terra de Morabeza… Agora vai regressar a terras lusitanas, levando no pensamento “uma paixão que se adivinha para a vida”, de seu nome Cabo Verde. 

Nani, o menino que virou estrela


Reportagem publicada em 2007 - Revista Afro 



Já parou para pensar como certas pessoas são tão boas naquilo que fazem que os diferencia dos demais? Por vezes, não se trata de génios, superdotados ou milagres, são pessoas que movidos pela paixão, pelo sonho, ou simplesmente pela garra de vencer, são dotados de talentos artísticos. O “puto” Nani não foge à regra...

Quem é que independente de ter sido menino ou menina na infância, já não resgatou as suas memórias de um tempo que passou e não volta mais... as peripécias inocentes, as fantasias rebuscadas de sonhos inalcançavéis, conversas sem pé nem cabeça, mas que naquela altura, naquele momento fazem todo o sentido!
A infância é agum inesquecível.... E naquela rua em especial, no bairro de Santa Filomena, mais principalmente em Casal de São Brás, na Amadora, entre o jogar às escondidas, à panhada ou ao rebenta à bolha, o futebol sempre reuniu a maioria dos consensos, tendo um domínio completo.
Nada como a velha bola de borracha grossa, quatro pedras para marcar a baliza, dividir a equipa, deixando sempre cada parte equilibrada e os meninos do bairro de Santa Filomena estavam prontos para mais uma tarde a driblar, a fintar e a marcar golos... Depois das aulas era vê-los a correr para mais uma “partida” de emoções. Entre os aspirantes a craques, sobressaia um magricelas, que apesar de ser leve como uma pena, jogava como se não houvesse amanhã... os pés esses pareciam que tinham sido polvurizados com pauzinhos de magia. Aos colegas restava apenas gritar compulsivamente cada vez que ele resolvia fintar de um extremo ao outro. “Passa a bola pá”, ouvia-se, mas já nessa altura era como se diz na gíria um “furão”.
Luís Carlos Almeida da Cunha, o Nani que hoje brilha no Manchester United e surpreende na Selecção Nacional, é o personagem principal de uma história já velhinha, mas que continua a inspirar aqueles que querem alcançar horizontes longíquos: O argumento baseia-se no menino pobre que consegue trocar uma casa humilde nos subúrbios de Lisboa, por uma vivenda de sonho em Inglaterra, tudo em nome de um talento nato. Neste caso, o exemplo de “Nanaca”, como é carinhosamente apelidado pela família”, é meramente realidade... e ele sem dúvida é uma das maiores estrelas da “constelação futebolística”.

”Sem botas para treinar”
Naquele tempo, jogar descalço na rua era realmente para poucos... Os pés, além de muito sujos formavam feridas, que demoravam a sarar. Porém, se Nani pudesse recuar no tempo iria certamente querer as mesmas “bolhas abertas”, tal como não iria desperdiçar o convite feito para ingressar no clube que lhe deu a mão... o tal que foi o meio para que pudesse atingir o fim tão desejado.
“Era um jovem ainda em evolução mas tecnicamente muito forte.  A bola era a sua companheira, e a ela, entregava todo o seu potencial inagualável”, lembra Hernani Fonseca, um dos primeiros treinadores de Nani, no Real Massamá de Queluz.
Educado pelo irmão e pela tia, com quem partilhava uma “alegre casinha tão modesta como ele” e talvez por saudades da presença dos progenitores (a mãe vivia na Holanda e o pai em Cabo Verde), Nani dormia todas as noites agarrado à sua “mais que tudo”: a bola.
“Quando foi para o Real vimos as dificuldades por que passava e nesse aspecto a instituição ajudou-o muito. Ele almoçava e jantava, todos os dias nas instalações do clube e quando se reparámos que nem sequer tinha botas para treinar, oferecemos umas. Ele retribuía com o seu empenho e dedicação”, confessa o “mister”.
“Um bom miúdo” assim apelidam o menino que, apesar de viver entre dois mundos, sempre soube entrar “no comboio dos campeões no momento certo e à hora exacta”, embarcando assim numa viagem em direcção ao sucesso. “Era um rapaz que aparecia sempre a horas para treinar, mas era necessário dar-lhe abanadela para o acordar... notava-se que lhe tinha custado levantar-se da cama”, diz entre risos Hernani Fernandes.
Quando o jovem foi chamado para um dos três grandes, não motivou surpresa, ao “mestre de muitas lições de contra-ataques e de vida”, nada que não tivesse à espera!
“Ele era muito magrinho, era pauzinho pequeninho, mas fazia o que queria com a bola e por isso dizíamos, muitas vezes, que só lhe faltava a oportunidade”, conclui o homem com mais 30 anos de formação de pequenos petizes.


Do oito para os oitenta
A oportunidade chegou... Luís Carlos Almeida da Cunha, com toda a habilidade chutou para canto, marcou um golaço e conquistou a sua primeira vitória: a ida para o Sporting.
“O princípio não foi fácil, porque o clube de Alvalade já tinha o Yannick Djaló que também era estrangeiro e de acordo com as regras da FIFA só podia jogar um. Ele teve seis meses sem competir”, conta João Souto,treinador dos Juvenis na altura e de momento nas camadas jovens do Benfica.
Mas a capacidade de Nani em “só com um toque ou uma finta de corpo conseguir passar entre vários adversários”, falou mais alto e a naturalização para que fosse português foi pedida. O jovem de raizes africanas, ciente das suas convições, lutou por um “lugar ao sol” no plantel sportinguista, acabando gradualmente por evidenciar-se dos demais. “É um fantasista, com uma liberdade fantastica de movimentos... brilha sem dúvida no campo. Lembrou-me de um miúdo muito disciplinado, que adorava fazer saltos mortais, principalmente num descampado ali perto, estando sempre disponível para aprender”, recorda João Souto.
Habituado a trabalhar com jovens promessas estrelas, como é o caso de João Moutinho e Miguel Veloso, o treinador que  viu Nani passar do oito para os oitenta, deixa a sua visão futurista do lugar na selecção: “Vai ganhar o espaço dele, tal como no Sporting que teve de o conquistar, mas como é um rapaz com muito mérito e principalmente persistente, deve estar para breve ser a primeira opção”.
Do clube de Alvalade para um dos maiores do mundo, Machester United, Nani tem agora a possibilidade de jogar entre os melhores e provar que pode ser “the number one”, qualidades não lhe faltam e pelos vistos genica tem para “dar e vender”. Assim nasce uma estrela...

sábado, 27 de outubro de 2012

Museu do Bonsai em Sintra - Uma réplica da Natureza


Reportagem publicada em 2005 - Jornal Notícias da Manhã


Chegar a Sintra, ou ao Monte da Lua, como também é conhecida, é como entrar noutra dimensão, noutro tempo, noutro mundo. Além da herança preciosa de cargas históricas e edifícios seculares, quem passa pela “vila mais romântica de Portugal”, deslumbra-se com o ar que se respira, com o som do vento e com o rosto que ganham as velhas árvores. Contudo, bem na entrada daquela localidade existe um lugar carregado de magia e de beleza mística, que há cerca de 20 anos retrata a história da generosidade da natureza – um local apelidado de Museu do Bonsai

Com a Serra de Sintra como cenário apelativo, o Museu do Bonsai, situado na estrada Chão de Meninos, transmite calma, paz, e ao mesmo tempo, uma energia gratificante a quem o visita, pela primeira vez, ou a quem opte por torná-lo um sitio de referência. Neste espaço, ao som de música oriental, os visitantes têm à sua disposição centenas de bonsais, de diversas espécies (laranjeiras, pinheiros, entre outros), rodeados por belos jardins, por um lago e por uma cascata onde o murmurinho da água enfeitiça os ouvidos de qualquer um. A ideia de um centro inovador e relaxante partiu de ideia de Marco Rodrigues, um sintrense com raízes moçambicanas. “Tudo surgiu de uma forma involuntária. Há 20 anos, eu e o meu pai fundamos um centro de jardinagem”. Com o passar do tempo, movido pela curiosidade, Marco começou a importar da Holanda pequenas quantidades de Bonsais. A curiosidade deu lugar à paixão e através da simpatia sentida pelas “árvores em vaso” (tradução da palavra bonsai), Marco passou a receber mais quantidades. “Começamos com uma prateleira, depois seguiu-se uma estufa pequena e mais tarde um jardim”. Há cinco anos, o adepto da arte de Bonsai, tomou uma opção que viria a mudar a sua vida. “Foi precisamente a 1 de Janeiro de 2000 que o meu pai passou-me por completo o centro. A partir desse momento, comecei a dedicar-me inteiramente aos bonsais”. Inspirado na sua criatividade e na sua imaginação, o proprietário do museu resolveu torna-lo num espaço mais atraente. “Há dois meses remodelei o centro. Para tal criei uma queda de água, um lago, e jardins, elementos que completam a beleza artística dos bonsais”, conta.
 Mas afinal o que são as chamadas “árvores em vaso”? “O bonsai é tal e qual o que há na natureza. São árvores em ponto pequeno e tudo o que há de arvores há em bonsai”. Porém o seu significado espiritual é bem maior. Na tradição chinesa e japonesa ter um bonsai em casa representa levar para o lar os bons fluidos. Apesar de os portugueses “irem muito em modas”, para Marco o principal motivo que leva as pessoas a comprarem este tipo de árvore é pela paz que comunicam. “As pessoas adquirem este tipo de arte devido ao relaxamento que transmite, mas também, porque podem assim ter um bocadinho da natureza em suas casas”, explica. Porém, a energia, a paz e a beleza que aquele espaço difunde são os elementos chave do sucesso deste centro pitoresco. “Tenho aqui clientes que vêm para cá aos fins-de-semana, passando o dia inteiro a cuidar dos nosso bonsais, é sem dúvida uma forma de aliviar o stress”, conta entusiasmado.
No museu os preços variam de acordo com a espécie e idade do bonsai, havendo para todos os gostos e carteiras. “Temos bonsais de 10 euros até sensivelmente aos 20 mil euros. As sementes rondam os 4 euros”.

Ar e Água - elementos fundamentais 
Como reflexos da natureza, os bonsais necessitam de ter cuidados essenciais como o ar e a água. “Há aqueles que vêm dos países tropicais que não podem apanhar neve, gelo e ventos frios. Depois existem os bonsais originários do norte do Japão, da Europa, (típicos bonsais do exterior), que já estão habituados a estas alterações climatéricas”. Apesar de esta arte requerer muita dedicação e paciência, Marco exalta que qualquer pessoa pode ter um bonsai. “É necessário saber que precisam de arejamento, quando a terra começa a ficar clara é um indicio que necessitam de água, sendo mais fáceis de cuidar do que qualquer tipo de planta”, salienta, acrescentando que um dos pontos fundamentais para a sua manutenção refere-se à escolha do local onde será mantido.
Para além destes cuidados, os bonsais existentes no museu estão livre de vitaminas e de outros tratamentos líquidos, pois segundo o proprietário as vitaminas viciam-nos levando à morte. “Na natureza as árvores alimentam-se de matéria natural sendo unicamente esses elementos naturais que damos aos nossos bonsais”.
O seu museu de valor inestimável, é para Marco muita mais do que um simples trabalho, é uma paixão, um gosto, uma arte viva correspondendo a uma fonte inesgotável de inspiração e meditação. “É uma arte milenar que me acompanhará até ao fim da minha existência”, conclui. 

Sabores de mil e uma noites


Reportagem publicada em 2008, na Revista Happy Woman 

Os temperos de Gibraltar, os paladares mauritanos. Os cozinhados de Raba ou os aromas de Marrakesch. A cozinha marroquina por terras de D. Afonso Henriques.
Será que a tradição ainda é o que era?                 

É uma das mais sensuais do mundo. Apela directamente aos sentidos do cheiro, da visão e do paladar. Brinca com especiarias fortes, mas que combinadas com outros ingredientes são capazes de deixar água na boca. Vinda da terra do sol poente, a cozinha marroquina está presente em Portugal em poucos restaurantes, que tentam ser fiéis à cultura gastronómica de Marrocos. Mas será que as genuínas tradições são cumpridas?


Influência árabe e judaica
A meio do dia, o ritual de sempre. Mohamed senta-se com os seus quatros filhos. Não existem cadeiras ou bancos, apenas diversos tapetes e almofadas ao redor. A mulher, Madina, com um vestido longo colorido, faz as honras da casa, trazendo as iguarias para a mesa. «As melhores refeições que pode encontrar são aquelas que são feitas nos lares e não nos restaurantes», refere o homem, enquanto dá o consentimento à esposa para começar a servir. A tradição nesta casa ainda é o que era, tudo é feito como foi ensinado.
A refeição do meio é a principal. Quando se olha para a diversidade de escolha pensa-se que é dia de festa. Mas não. Todas as especialidades possíveis e imaginárias estão presentes para satisfazer o apetite daquela família e somente para aquele instante.
Viajar pelos paladares de um manjar cheio de segredos. Desfrutar de cada minuto daquela refeição. O marroquino tem muito orgulho da sua cozinha, tal como Mahomed faz questão de salientar, por isso a partilha de refeições é quase como um momento sagrado.
Entre um golo no chá de hortelã e o trincar num pedaço de pão doce, o natural da capital marroquina, vai esclarecendo sobre a essência de uma das cozinhas menos exploradas pelos europeus. «A comida marroquina tem influências árabes, que se encontram nas cidades de Marrakech e Fez, mas também inspira-se nas tradições judaicas, localizadas por exemplo na cidade de Essaouira. A diversidade torna-a impar, quem a prova ou ama ou detesta. Não há meio termo». Um facto já insinuado por Fernando Pessoa, no seu caderno de viagens, aquando a  sua visita a uma das cidades marroquinas. «Primeiro estranha-se, depois entranha-se».
Enquanto almoçam a família de Mahomed dispensa dos talheres. O principal utensílio culinário são as mãos, melhor dizendo os dedos. Segundo o «manual marroquino dos bons costumes», para comer só devem ser utilizados três dedos, como fazem os profetas: o médio, o indicador e o polegar.


Cientistas da cozinha marroquina
Dos vários pratos dispostos sobre a mesa, não poderia deixar de estar presente as “duas fórmulas” mais conhecidas no Ocidente: a Tagine e o Cuscuz. O primeiro, um cozido servido num recipiente redondo de cerâmica, com uma tampa em forma de cone à base de legumes, carne ou peixe. O segundo, simples sêmolas de trigo cozida que se apresenta como óptima alternativa ao arroz, à massa ou às batatas, mas também é usado em saladas e sobremesas.
«O tagine é o mais utilizado, há mais de 400 receitas deste tipo de comida. Com ameixa, azeitona, de laranja», esclareceu o marroquino.
A carne de cordeiro, frango e vitela são imprescindíveis neste menu das arábias, já o açafrão e a canela dão cor aos temperos. Vermelho, castanho, verde, um arco-iris de paladares.
«Em Portugal, há poucos restaurantes, e mesmo assim alguns pecam por não cumprirem certas regras. Sou da opinião que todos deveriam ter cozinheiros marroquinos. São os entendidos na matéria e não só, sabem realmente quais os ingredientes certos, como misturá-lo o doce e o salgado,  como mexer da maneira correcta. Digamos que são os verdadeiros cientistas da cozinha marroquina», refere Mahomed.
Passado uma hora continuam a desfrutar do aroma do gengibre, o número um das especiarias marroquinas, que acende o coração. O marroquino tem muito orgulho da sua cozinha, tal como Mahomed faz questão de salientar, por isso a partilha de refeições é quase como um momento sagrado.
Antes de terminar a viagem pelos paladares de uma cozinha cheia de segredos, Mohamed elege o restaurante de uma compatriota como aquele onde melhor se revive os sabores exóticos da sua terra. «É como se estivesse em casa».


As mãos de Rabea
Entre ruelas e travessas. Num dos corações lisboetas. Foi no Bairro Alto, que Rabea Esserghini decidiu abrir o Flor de Laranja. Natural de Casablanca, há dez anos em Lisboa, a marroquina apoiou-se no seu conhecimento gastronómico e resolveu dar a conhecer os seus dotes culinários.
Contando com apenas 22 lugares, o estabelecimento tem como cozinheira residente a própria Rabea, que também faz as compras e recebe as pessoas. Uma três em um. Da ementa a Tagine de Borrego com Ameixas ou o Frango com Limão, faz as delícias de quem lá passa. Os famosos chás. Para todos os gostos e feitios, desde o menta à Flor de Laranja são muito requisitados. «Quando me pedem uma entrevista para saber se sigo ou não as tradições, digo logo, venha cá sem se identificar e diga de sua justiça. Gosto de ganhar as pessoas com a gastronomia não com as palavras», salienta.
De quinta a sábado, o espaço recorda as noites quentes de Marrocos com a perfomance de uma bailarina que presenteia os clientes com a miíica dança do ventre. A alegria sente-se no ar. «É como visitasse o meu país através das mãos de Rabea», diz um dos marroquinos presentes no restaurante.

"Amor ao primeiro paladar"
Patrícia Figueiredo é uma amante do Todo Terreno. Devido à paixão pelos jipes já esteve por diversas vezes no deserto do Sahara ou na cosmopolita Casablanca, onde o seu primeiro contacto com a gastronomia local foi amor ao primeiro paladar. «O que me mais atrai neste tipo de comida é o seu exotismo, as diferentes combinações de sabores e condimentos com que são confeccionadas. Por isso sempre que tenho uma oportunidade de experimentar novos pratos, não a perco».
Depois de mais uma aventura, ao regressar a Portugal, a advogada de 35 anos, tenta matar as saudades dos sabores de mil e uma noites. «A oferta é muito pouca e sinceramente já estive presente em alguns restaurantes que estão a anos de luz de reproduzir a verdadeira comida marroquina. Mas descobri há pouco tempo o Marrokos. Além da comida ser idêntica o espaço está muito bem conseguido e principalmente tem uma cozinheira marroquina que replica em solo português as receitas que trouxe na bagagem.
Uma sopa tradicional a Harira como entrada, Tagine de Kefta para refeição principal finalizando com Briuats Doces (biscoito tradicional Marroquino com recheio de amêndoa) é uma das refeições preferidas.
De seguida um variado leque de aromáticos tabacos de sabor frutado, que podem ser fumados nas fabulosas narguilhas, que fazemos questão em preparar com todo o preceito.” dança do ventre, a actuação de músicos marroquinos, encantadores de serpentes, o ritual do chá e as tatuagens Henna.

Victorino de Almeida - "O Maestro em Cabo Verde"


Reportagem publicada em 2009 em Expresso das Ilhas 



Génio louco. Comunicador nato. Inesquecível pianista. Tantas definições para um só homem. António Victorino de Almeida, o maestro de Portugal e do mundo esteve em Cabo Verde, pela primeira vez, para realizar um recital comentado.  O Expresso quis comprovar a sua “excentricidade” através de uma conversa descontraída e pouco formal.
  
Década de 40. O fim da segunda Guerra Mundial. Em Portugal cantava-se contra a ditadura, através de letras camufladas. Cabo Verde começava a dar os primeiros passos na emissão radiofónica.
Do outro lado do Atlântico, mais propriamente em 1945, um menino de 5 anos elaborava a sua “primeira musiquinha clássica”. Menino-prodígio? Não no sentido “perverso” da palavra, pois António nunca deixou de brincar na rua, tal como os outros meninos da sua idade e, de fazer as suas travessuras, próprias de uma infância “feliz”. Teve muitos amores, dois casamentos, diversas paixões, mas foi com a música que fez um compromisso para a vida. Uma aliança onde não há lugar para traições, ciúmes, desenganos ou obsessões.
Certamente o facto de ter um avô paterno, Achilles d’ Almeida, músico amador, poeta, autor e encenador de peças e teatro, uma mãe, Maria Amélia Goulart de Medeiros, uma cantora lírica com uma carreira de curta duração, e um pai, Vitorino de Almeida, que o incentivou a desenvolver o gosto pela “beleza das pautas, dos sons e da arte musical”, contribuiu para que aos 13 anos realizasse o seu primeiro concerto no Conservatório. Obras de Mozart e Beethoven e duas peças de sua autoria foram o reportório escolhido.
Década de 60… enquanto por terras de Morabeza, o grupo musical “Os Apolos” encantavam os cabo-verdianos com a sua versatilidade musical, “Antonito” (nome dado por uma crítica no jornal o Século Ilustrado que considerou maravilhoso o seu poder de interpretação) concluía o Curso Superior de Piano do Conservatório Nacional de Lisboa com 19 valores, para depois seguir para Viena, onde se diplomou em Composição com a mais alta classificação conferida pela Escola Superior de Música daquela cidade. A partir daqui António Victorino de Almeida, mais conhecido como o maestro, iniciou um percurso de sucesso, onde a música “é o elo de ligação que dá consistência a tudo o que faz.
Concertista, compositor, chefe de orquestra, apresentador de programas televisivos, escritor, Adido Cultural da Embaixada de Portugal em Viena, guionista, este comunicador nato é muitas vezes apelidado de “homem dos sete ofícios”.
Ano de 2008. Olha para trás não com o sentimento de missão cumprida mas com uma sensação consoladora. “Estou longe de considerar que fiz tudo o que queria. Tomei há pouco tempo uma decisão pouco ortodoxa… Ao contrário do que as pessoas fazem, digo publicamente a minha idade, 68 anos, mas auto convenço-me que só tenho 63 anos. Dá me jeito neste momento”, diz com o seu eterno ar de criança, não conseguindo manter por muito tempo a postura séria, próprio de um entrevistado.
Na sua primeira viagem a Cabo Verde, o homem sem pudor nas palavras, realizou dois concertos na Praia e no Mindelo (a convite do IC-Centro Cultural Português), onde “além do seu virtuosismo como pianista, o público pode apreciar aquele que é um dos grandes comunicadores portugueses na área da musica”. O Expresso teve oportunidade de conversar com aquele que é considerado por uns como “o génio excêntrico” e por outros “um talento nato da música”.

Um breve olhar sobre a terra crioula
“Quando tinha 25 anos foi ao Brasil e o barco parou em S. Vicente, mas não desci. Esta foi a primeira vez que pisei solo cabo-verdiano. Não vinha com uma ideia pré-definida, mas a sensação que tive logo na ilha do Sal e depois confirmado em S. Vicente, é um sentimento difícil de explicar… de estar num país onde há uma grande pobreza mas não há miséria, ou seja, esta última conduz à degradação do ser humano, já a pobreza, a pessoa é pobre mas tem a sua dignidade, a sensação que tive aqui é a contrária à de outros países, inclusive da Europa. Sei que são muito pobres e, no entanto olho para um bairro de lata de Mindelo e, apesar da barraca não ser melhor do que qualquer outra noutro lugar, tem outro ‘cenário’. Um tecto amarelo, a porta está pintada de encarnado, isso mostra que a pessoa afirma: ‘aqui mora alguém que é pobre mas não deixa de ter a sua personalidade e dignidade’, são pormenores que ficam na retina. Não é em três dias que vou julgar esta terra que numa coisa é perita: sabe receber.

A excentricidade que lhe é reconhecida
“Não concordo com essa definição. Por ter uma bengala, ter o cabelo desalinhado e quase sempre cumprido não faz de mim um ‘extravagante’. Sou um trabalhador na expressão mais nobre, tento nunca o fazer mal e sempre que possível naquilo que gosto e isso tenho conseguido. Nesse aspecto é assim que me defino: vivo a trabalhar.”

Portugal e as orquestras
Sempre gostei de trabalhar em Portugal. Irrito-me constantemente com os problemas estruturais que impedem que a música se desenvolva. Nada tem a ver com as pessoas, pois temos uma geração de jovens músicos, sérios, empenhados que davam para quatro Orquestras Sinfónicas. Por exemplo: Certo dia, houve um político que acordou de manhã, com a ideia que queria criar uma orquestra. Perguntou-me, mais tarde, qual era o custo. Respondi através de uma linguagem que ele percebe-se: ‘os honorários de oitenta músicos custam por mês o Jardel e o João Pinto.’ Ele rematou de uma forma engraçada. ‘Pensava que era mais em termos de Figo’. Isto para dizer que, na realidade não se faz mais Orquestras porque não se quer. Há músicos e público, mas não existe Governos que tenham uma política cultural.

Os livros e Vitorino
“O Jorge Borges Macedo (historiador de renome) e o António José Saraiva (escritor, ensaísta, crítico e historiador da literatura portuguesa) incentivaram-me a escrever. Ambos tinham uma grande sensibilidade literária, mas a nível musical eram nulos. Portanto, para eles a minha pessoa interessava como potencial escritor, alias quando o Jorge Borges Macedo me encontrava a primeira coisa que perguntava era o que tinha escrito recentemente e, não se tinha feito concertos. Levo muito a sério a escrita. O próximo livro que vai sair em Novembro, dois volumes será a primeira história da música escrita em Portugal e estou extremamente honrado de ter um prefácio do Marcelo Rebelo de Sousa e uma nota introdutória de José Saramago, estou completamente babado. Portanto, o acto de escrever ocupa um lugar privilegiado na minha vida”.  

O desencanto pela “caixinha mágica” e pela RTP
Já tive tantas aventuras profissionais… mas a coisa que menos achei graça foi a televisão… houve uma altura em que me apaixonei pela ‘caixinha mágica’, o programa que fiz há 40 anos continua a ser falado actualmente e isso é gratificante. Porém, os últimos programas que fiz (Duetos imprevistos na SIC, o pianíssimo, RTP, e os Sons do Tempo a passar neste momento no primeiro canal), passaram às 1h30, chegando acabar às 3h00 e isso é de uma ordinarice. A RTP não tem nenhum álibi, porque é uma estação pública e coloca programas culturais de madrugada, um insulto para os telespectadores. Simplesmente querem mostrar que fazem alguma coisa, mas no fundo não gostam, pois o que adoram são os concursos. Na RTP, consideram-me uma pessoa atingida de senilidade. A minha intenção com este programa é pagar tudo à RTP e vender em DVD o “Sons do Tempo”, o objectivo é divulgar, dar a conhecer a minha obra.


Lição de vida
“Um bom maestro é aquele que dirige um décimo de segundo a frente e o mau é o que dirige um décimo segundo atrás. O público como é evidente não nota. Neste décimo segundo há um que comanda e há outro que é comandado. A pessoa tem de estar sempre a ler o compasso que vem a seguir, enquanto está a realizar o compasso que já leu. Isto é uma avaliação para a vida, devemos estar a pensar naquilo que vamos fazer a seguir e não naquilo que já foi. 

Foto: Retirada da Net

Os meus 35 anos com Salazar - A íntima convivência com ditador

Reportagem feita em 2006, publicada: Revista Mulher Moderna

 Foi um prazer "conversar" com a Sra. Maria da Conceição... Lembrou-me que na altura fiquei completamente rendida ao seu ar doce...Durante horas, falou de um "Salazar" amigo, amável e em alguns momentos carinhoso... um Salazar que é difícil de acreditar que existiu!

Maria da Conceição estava sentada numa cadeira sob o olhar atento e paternal de António Oliveira Salazar quando um homem à sua frente preparava-se para tirar uma fotografia. Com apenas 7 anos, a menina surgiu na capa do jornal O Século, com aquele que ela gostava de chamar de "senhor doutor". Nenhum laço os unia apenas um sentimento de afecto e carinho que ambos partilhavam. Aos 6 anos, Maria da Conceição de Melo Rita passou a conviver diariamente com o homem que Portugal mais temia. O seu tutor, por "quem tem uma admiração incontestável", é agora a personagem principal do seu livro de memórias, onde a jovem de 78 anos desvenda o seu quotidiano até agora desconhecido: desde as histórias contadas por Salazar na hora do dormir, aos gostos gastronómicos do criador do Estado Novo, como as raras confissões sobre política quando passeavam pelos jardins de S. Bento. "Acompanhei-o assim até ao fim da vida dele". Auxiliada pelo jornalista, Joaquim Vieira, em cerca de 200 páginas, Maria da Conceição dá o seu depoimento único e histórico, relatando o seu percurso junto do seu "pai adoptivo", até ao dia em que não o pode mais acompanhar...

  O primeiro dia na casa do "Sr. Doutor"
"Foi no fins de Abril de 1935, que a minha cunhada, casada com o meu irmão mais velho chamado José, foi pedir à irmã dela, a governanta Maria Jesus Freire, para me deixar ficar uns dias lá em casa. Tinha então 6 anos. Durante aqueles dias, afeiçoei-me a tudo. Quando quiseram que regressasse não quis, já estava habituada à maneira terna como o Dr. Salazar me tratava. Primeiro fiquei a viver na Rua Bernardo Lima e depois fomos para a residência oficial de S. Bento".
  "A governanta"
Recordou a Maria de Jesus Freire como uma pessoa muito austera, implacável, era uma pessoa que gostava que fosse tudo feito à sua maneira, não era má, só exigente demais".

  O nome “Micas”
"O Dr. Salazar achava que o meu nome Maria Conceição era muito comprido então deu-me a escolher ou “Micas” ou “Maria Pequena”, optei pelo primeiro e assim fiquei toda a vida.

O Fascínio pelo "pai adoptivo"
"Gostava muito da sua maneira de ser e da vida simples que tinha, era uma pessoa que se distanciava das grandes multidões, não gostava de estar em contacto com o público. Mas ao mesmo tempo era terno (aconchegava-me os cobertores à noite, contava-me histórias para dormir) como era rigoroso no que dizia respeito à escola. Foi como um pai, o meu protector".

  A economia doméstica
"Havia o espírito da poupança, a governanta fazia-me os vestidos aproveitando antigos roupões... Mandou fechar todos os pertences do Palácio de São Bento pois achava que aquilo era do Estado e como tal não se devia utilizar. Todas as decisões passavam pelo 'doutor' menos os afazeres domésticos". Os passeios nos Jardins de S. Bento "Nos nossos passeios nocturnos conversávamos sobre a minha rotina, os meus estudos o que tinha feito ao longo do dia, por vezes surgia o assunto política. Dizia-me que queria manter o controlo sobre as nossas colónias, mas sabia que após a sua morte iriam querer a independência. Considerava que aqueles povos não estavam preparados para essa etapa. Se pudesse voltar atrás no tempo, talvez tivesse conversado mais abertamente sobre este assunto".

  O atentado de 1937
A 14 de Julho o conhecido anarquista Emídio Santana, com outros companheiros, organizou um atentado bombista contra Salazar, que não teve êxito. "Ainda estava na casa da Rua Bernardo Lima quando tudo aconteceu. Encontrava-me na missa, na antiga igreja de Santa Marta, quando entrou uma pessoa a dizer que o 'doutor Salazar' tinha sofrido um atentado. Fomos de imediato para casa. Quando chegou a casa, calmo como nada se tivesse passado, apenas trazia o fato salpicado de areia, agarrei-me a ele e disse: 'Não quero que o Senhor Doutor morra', passou-me a mão pela cabeça e disse: 'está descansada que nada me vai acontecer'".

  As escassas amizades
 "Tinha pouco tempo para as amigas, como vivia numa casa que não era minha tinha vergonha de levá-las até lá... uma questão de respeito. Fui feliz à minha maneira, estava habituada aquela época, mas admito que tive uma infância um pouco solitária".

  A candidatura do General Humberto Delgado e o seu posterior assassinato
 Em 1958, o General participou nas eleições presidenciais contra o almirante Américo Tomás (apoiado por Salazar), acabando por ser derrotado graças à gigantesca fraude eleitoral, montada pelo regime. Sete anos depois, um comando da PIDE, liderado por Rosa Cavaco, assassina-o a tiro, bem como a sua secretária. Salazar veio a público afirmar que nada tinha a ver com tal acto. "Em 1957 casei no Palácio de São Bento, onde também se fez a boda. Um ano depois nasceu o meu primeiro filho, António que foi apadrinhado pelo "doutor" e mais tarde a minha segunda filha, Margarida. Apesar de estar ocupada com a maternidade, lembrou-me perfeitamente das eleições passarem despercebidas, pois Salazar tinha mais apoiantes. Os anos passaram e quando se soube da morte do general, o 'doutor' ficou abalado como as coisas se tinham processado. Tenho a certeza que ele não sabia de nada".

  Últimos anos da década de 50 início dos anos 60
 Vários acontecimentos políticos ocorrem nesta época. Henrique Galvão desvia o paquete Santa Maria, começa a guerra em Angola, Salazar tenta acabar com a rebelião dentro do seu executivo (o seu Ministro de Defesa, Botelho Moniz, lidera um golpe de Estado que não deu certo). "Nesta altura, o Dr. Salazar começou a trazer as preocupações para o seio familiar. Apesar de já não viver com ele visitava-o quase todos os dias. Encontrava-o preocupado mas nunca falou destes assuntos".

  Os objectos herdados
"Guardo com muito carinho uma medalha de ouro com a imagem da Nossa Senhora que me ofereceu, mas também dava-me coisas extravagantes. Houve uma vez, que foi presenteada com uma pele de cobra com a qual o meu marido revestiu uma mala. Ele era muito amável".

  A queda do criador do Estado Novo
"Quando adoeceu visitava-o todos os dias, havia uns momentos que estava inconsciente e outros lúcidos e nesses sempre me reconheceu. Mas acho que tinha a noção de que algum não estava a correr bem".

  O livro 
Contando com a ajuda do escritor Joaquim Vieira, e da filha Margarida, pessoa importante neste processo, Maria da Conceição de Melo Rita resolveu passar as suas memórias para o papel. Foram longos os serões, onde a "filha adoptiva" regressou ao passado e visitou em pensamento os Jardins de S. Bento... Tudo em nome da família. "O meu livro é apenas um testemunho só isso, primeiramente deixado para os meus filhos e netos e agora para todos os portugueses. Não pretendo virar a história em favor do "doutor" mas apenas falar de um Salazar em privado, onde a voz é aquela que habitou na mesma residência ao longo de mais vinte anos e a frequentou outros quinze. Para mim e para os meus filhos sempre foi muito bom, tenho por ele uma admiração incontestável".